Tornou-se polêmico o tema COVID-19 e a doença profissional, em artigo veiculado em alguns jornais e portais. Afinal, notícias jurídicas erradas também “viralizam”.
De um lado, formou-se uma fileira de indignados, do setor empresarial, notadamente empregadores, buscando orientação correta com seus órgãos jurídicos. De outro, empregados com o mesmo objetivo, buscando orientação jurídica. No cenário, ao fundo, a questão econômica, para os primeiros, como despesa injusta, para os segundos, aumento de receita.
- Doença profissional
Pela legislação em vigor, há um rol de enfermidades que estão associadas ao exercício de uma atividade profissional.
O fato de uma doença ser tipificada como profissional, tem para o trabalhador a vantagem da equiparação aos efeitos do acidente de trabalho, implicando, portanto, um cálculo diferenciado a seu favor dos benefícios da previdência social, tanto no afastamento para tratar da doença, praticamente sem redução salarial, como na aposentadoria e, mais tarde, na pensão.
O ônus da doença profissional era repartido pela sociedade, em especial todos os contribuintes da seguridade social, até 1988.
A Constituição Federal de 1988, criou nova regra dispondo que o pagamento do seguro por acidente de trabalho, fica a cargo do empregador. Poderá, no entanto, ser devida uma indenização adicional se este, ciente do risco, incorrer em dolo ou culpa para ocasionar o acidente ou a doença profissional1.
Este grande avanço ensejou a responsabilização e a tomada de consciência no sentido de zelar pela aquisição e efetivo uso de equipamentos de proteção individual, o intenso trabalho para reduzir os riscos do ambiente de trabalho e a melhoria da salubridade.
O empregador passou a ficar mais vigilante para inibir a falta de zelo do empregado no ambiente de trabalho, ou negligência no uso de alguns desconfortáveis equipamentos de proteção individual. O empregado se sentiu mais autorizado a pedir a proteção e a salubridade do ambiente.
2. Pandemia – COVID-19
A pandemia, decorrente da COVID-19, ensejou a edição de várias leis e medidas provisórias. Por força dessas normas, também, foram editadas portarias e resoluções criando-se novo Direito Provisório.
A pandemia, com contágio declarado comunitário, tem o efeito de tratar os contaminados, pelo poder público, independente da origem do contágio. Para os que não sabem, quando o contágio é declarado comunitário implica o fato de não haver possibilidade concreta de definir a causa da contaminação. Cada um pode, por si, levantar as suspeitas do contágio e pode também, por si, evitar o contágio.
Há, porém, uma só palavra que é reconhecida por todos, cientistas e leigos: incerteza. Incerteza sobre os efeitos do vírus, que variam de pessoa para pessoa, incertezas sobre os efeitos uniformes ou diversos sobre cada ser humano.
- As decisões do Supremo Tribunal Federal – STF
Situado no ápice do Poder Judiciário, ao STF cabe interpretar a Constituição Federal e a conformidade das leis com a Constituição.
A sua função política é secundária e se traduz na aplicação da ciência jurídica, devendo zelar pelos princípios da paz social e da segurança jurídica das relações, propiciando, desse modo, os instrumentos necessários para o desenvolvimento econômico e social.
No exercício dessa competência, contrariando o voto do Ministro Marco Aurélio, o STF2, em decisão plenária, por videoconferência, por apertada maioria, acolheu o voto do Ministro Alexandre de Moraes, suspendendo a eficácia dos arts. 29 e 31 da Medida Provisória no 927/2020.
- A norma suspensa
Diz respeito ao presente estudo o art. 29, tão somente.
MEDIDA PROVISÓRIA Nº 927, DE 22 DE MARÇO DE 2020
Art. 29. Os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.
Quando uma norma é considerada inconstitucional, perde a eficácia. Simplesmente isso.
É um grave equívoco jurídico entender que o STF legislou em sentido contrário ao conteúdo dessa norma. Assim, de forma simples: se a norma apreciada estabelecia que “a contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais”, a decisão do STF não significa que contaminação pelo coronavírus (covid-19) será considerada doença ocupacional ou contaminação ocupacional.
O STF não tem competência para legislar, mas para apreciar uma norma e definir se está ou não conforme, isto é, de acordo com a Constituição Federal.
Quando considera que a norma não está, apenas retira a eficácia da norma. No lugar fica um vazio, que pode ser suprido por nova norma ou apenas ser um caso em que não há necessidade de norma.
- A norma e a falta de norma
Neste particular caso, é fácil perceber que tanto o texto do art. 29 da Medida Provisória, como a decisão do Ministro Marco Aurélio serviriam mais ao país.
Explica-se.
Ao declarar que “a contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais”, entenda-se “doenças ocupacionais” a norma afasta a generalização do entendimento, mas ressalvou a condição particular de haver exceção, quando for comprovado o nexo causal.
Nexo causal que para o empregado seria demonstrado com condutas dolosas do empregador, como obrigar o atendimento de paciente infectado, sem os equipamentos de proteção individual necessários. Ou o atendimento em geral num ambiente em que seja impossível a proteção individual. Assim, a exceção dependeria de prova.
Agora, diante do vazio legislativo, sem norma geral, caberá ao juiz e aos operadores do Direito construírem o entendimento que considerar adequado.
O resultado prático, portanto, se coloca em oposição à nobre função do STF, retirando a segurança jurídica indispensável à sociedade.
Não há dúvidas, porém, que somente será doença profissional se o empregado demonstrar que a contaminação ocorreu no ambiente de trabalho. Na sequência, deverá demonstrar que houve dolo específico para que o empregador venha a responder.
A simples decretação de “contaminação comunitária” afasta a responsabilidade de todos serem obrigados a indenizar todos os contaminados.
Para encerrar: é importante envidar esforços para esclarecer a sociedade, corretamente. A ignorância ou a divulgação de interpretação incorreta das leis traz graves consequências para a sociedade. A notícia divulgada desserviu ao país. Não se trata de democraticamente haver obrigação de tolerar opiniões diferentes; trata-se de interpretar uma decisão do STF e inserir o que não foi decidido, para criar expectativas que a ciência jurídica não valida.
Assim, como se clama pelo respeito aos postulados da Ciência médica na adoção de políticas públicas de combate à covid-19, é salutar que para interpretar decisões jurídicas se exija o domínio dos princípios do Direito.
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1 Art. 7º, inc. XXVIII, da Constituição Federal.
2 A decisão aproveitou sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade ADIs nos 6342, ADI 6344, ADI 6346, ADI 6348, 6349, 6352 e ADI 6354.