Por Marcelo Souza Rocha*

Uma coisa que me incomodava muito era não entender como a Administração Pública, invariavelmente, deixa de alcançar a tão esperada excelência em suas contratações. Será que a resposta para esse incômodo era algo que eu já sabia, mas que de tão simples, ficava perdido em meio a tantas ponderações?

Foi quando, assistindo um antigo desenho animado com minha neta, eu descobri que o coiote e o papa-léguas poderiam resolver muitos dos meus questionamentos, mas que até então, eu ignorava.

Se você nunca ouviu falar do coiote e do papa-léguas, trata-se de um dos mais conhecidos Looney Tunes, criado em 1949 por Chuck Jones para os estúdios da Warner Bros. Willy Coiote, baseado num animal real nativo dos desertos do sudoeste americano, é um personagem faminto que tenta capturar o Papa-léguas – um galo-corredor conhecido entre os americanos como roadrunner, “corredor das estradas” -, invariavelmente sem sucesso.

Apesar das inúmeras lições que circulam no mundo corporativo extraídas dessa programação, aqui vai mais uma que acabou me fazendo compreender dois comportamentos muito peculiares, frequentemente presentes nos servidores que lidam com as contratações.

Lembro-me de gostar muito daquele desenho em que um papa-léguas vivia correndo desvairadamente pelas estradas do deserto norte-americano, enquanto um coiote sempre elaborava planos mirabolantes para capturá-lo, gastando muito tempo e muitos recursos com materiais das “Empresas ACME” e montar diversas engenhocas para servir como armadilha ao papa-léguas. Em nenhum episódio que assisti eu vi o coiote ter sucesso; o papa-léguas, mais rápido e inteligente, sempre escapava do “perverso” coiote, que tantas vezes via seu invento funcionar contra si.

Pois bem. O que esse singelo desenho, que fez parte da infância de tantos brasileiros, revela de interessante no campo das contratações públicas? Vejamos: O coiote tem foco, propósito, recursos, planeja suas ações com esmero, mas afinal, por que ele não pega o papa-léguas?

Propósito

A intenção do coiote é saciar sua fome. Mesmo entre nós, humanos, esse é um dos maiores propósitos que, se não for satisfeito, coloca em risco nossa própria sobrevivência. O foco do coiote é claro: devorar aquela ave; ele quer o papa-léguas e não serve outras coisas.

Foi então que me perguntei, e o comprador público, tem um propósito tão bem definido? O servidor precisa ser inteligente, deve usar sua competência em elaborar ideias e projetos numa causa justa, honesta, ter claro quais são os objetivos institucionais. O foco do coiote não é destruir o papa-léguas, ele quer matar a própria fome. E quantos servidores realmente introjetam um propósito altruísta nas contratações de que são responsáveis?

Recursos

Na minha infância eu perguntava: se o coiote tem dinheiro para comprar tantos produtos ACME, porque ele não compra comida? Hoje, lembrando daquela ingênua pergunta emergiu uma realidade: o coiote tem recursos suficientes para encomendar aqueles produtos pelo correio – que sempre chegam numa caixa. Em vários episódios vemos ele dedicando tempo para vistoriar o local, ler o manual de instruções…, enfim, ele tinha tempo para estudar e aprender alguma coisa que iria usar, para colocar em prática no seu plano de ação.

E o comprador público? Tem esse luxo? Vemos nos orçamentos públicos bilhões de Reais para todos os tipos de projetos, mas nada, ou muito pouco recurso é disponibilizado para capacitar o servidor, para investir no ser humano e ensiná-lo a economizar o próprio erário. No mundo corporativo, as pessoas mais brilhantes e realizadas são aquelas que estudam com regularidade; independentemente do “papa-léguas” que tenham pela frente, as pessoas não param de estudar para se preparar para os desafios que se aproximam delas.

Planejamento e execução

Talvez aqui seja um dos principais fatores que me levaram a fazer esta analogia com a contratação pública. Saltou-me aos olhos que o coiote desenha planos, tantas vezes detalhados e feitos com requinte – se você já viu algum desenho, vai lembrar que o plano parecia antigos projetos de engenharia, todo desenhado em um papel azul com letras brancas – ele faz cálculos indicando qual a trajetória esperada de uma pedra, a velocidade de uma bigorna ou como uma flecha deve ser disparada de um ponto a outro. Ele trabalha um bom tempo planejando o que vai fazer. No plano tudo sempre dará certo, mas na hora da execução… o que se seguia era aqueles olhos esbugalhados, um assovio e o som “ploft”.

Eu dizia, “mas que coiote burro! Sempre erra a execução do seu plano”. A pedra não rola, a corda não é flexível, a bigorna é pesada demais; resultado, alguma coisa muda e ele sempre fica no prejuízo, caindo de um penhasco, batendo de frente em uma parede ou sendo atropelado por um caminhão e, pior, não atinge o objetivo de almoçar o papa-léguas.

Então me lembrei daqueles projetos básicos ou termos de referência dos órgãos, que tomam tempo, ocupam pessoas, gastam recursos, mas não trazem os resultados esperados porque não houve qualidade na execução.

Um planejamento adequado deve ser feito até o fim, isto é, deve ser pensado em tudo que se consegue imaginar que possa dar errado e, para cada um dos obstáculos, prever um plano de contingência. E se a pesquisa de preços estiver errada? E se o prazo de publicidade não foi suficiente? E se houver impugnação? E se não acudir interessado? E se a internet cair? E se o contratado atrasar a entrega? E se o executor do contrato adoecer? E se….

Como disse certa vez o Cardeal Richelieu, “A experiência mostra que, prevendo com bastante antecedência os passos a serem dados, é possível agir rapidamente na hora de executá-los”. Essa rapidez na ação, no último instante mudar de direção não lembra o papa-léguas? Aqui, talvez, você diga que preferia ser o papa-léguas, que só se dá bem. Será um bom exemplo?

No desenho vemos um papa-léguas que só vive correndo. Para chegar aonde? (Será alguém já descobriu?) É um comportamento muito próximo de alguns órgãos com carências de objetivos e indefinição de métodos, fazendo com que todos os evolvidos nos projetos corram feitos uns “papa-léguas loucos” para chegar a lugar nenhum.

Muitas vezes, mesmo com objetivos incertos, o comprador público conta com sua agilidade, leveza, esperteza e percepção para escapar ileso dos “coiotes de plantão”. Suas habilidades podem ser, em certa medida, segredos para o sucesso… mas um sucesso incerto. Em nossa analogia, o certo é que, se o coiote nunca pegou o papa-léguas, o papa-léguas, por outro lado, nunca chegou a lugar nenhum. Percebem? Nenhum dos dois, isoladamente, conseguiram atingir algum objetivo.

Conclusão

No início deste artigo me referi a dois comportamentos muito peculiares, frequentemente presentes nos servidores que lidam com as contratações: o planejamento sem execução do coiote, e a execução sem planejamento do papa-léguas. Ambos os perfis de ações, isoladamente, são maléficos diante da esperada qualidade no gasto público. Então que lições podemos extrair de tudo isto?

Tenha propósitos claros. Use sua competência para elaborar ideias e projetos numa causa justa, honesta, republicana, jamais para “destruir o papa-léguas”.
Ter foco é vital, mas não basta. O excesso de motivação focalizado no lugar errado, ou nas mãos erradas, pode trazer efeitos indesejados; assim como o papa-léguas, você pode correr muito e não chegar a lugar algum. Como já disse alguém: “pior do que ir por um caminho errado, é ir para ele muito motivado”.
Fortaleça sua inteligência emocional. Por mais sofrimento que tenha, o coiote jamais desistiu, sempre voltava com mais vontade de atingir seu objetivo. Nunca desistir do seu propósito é ter a capacidade para administrar as próprias emoções e usá-las a seu favor.
Invista em seus objetivos. Reserve recursos, dedique tempo, empregue dinheiro, capacite-se, faça benchmark. Lembre-se, nem sempre conseguiremos atingir os nossos objetivos sozinhos; existem pessoas hábeis em planejar, outras em executar, portanto, peça ajuda.
Planeje tudo até o fim. O horizonte temporal do planejamento de uma contratação não termina na licitação. Planeje inclusive a execução e se prepare para o pior para garantir o êxito. O sucesso de um projeto necessariamente passa por uma ideia clara e um planejamento que detalhe todas as fases e metas até o final da execução.

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